quarta-feira, 16 de maio de 2012


As “coisas-zumbi” têm vida própria

Arnaldo Jarbor
Como analisar um mundo de incertezas?
Revejo meus artigos desde 1991, quando comecei a escrever em jornais e, logo depois, a fazer comentários na TV e radio. Quase 20 anos de falação e escritura. Mais de 2 mil crônicas em jornal e (contei) cerca de 2,8 mil comentários na TV, sem falar no radio. E dai? Será que adiantou alguma coisa? Digo isso porque, na época, jurei que, por falta de assunto, jamais começaria um artigo com a frase: “Estou diante da página branca em busca de um tema.” Jurei e cumpro o juramento, porque hoje quem está diante da página branca é o País.
“Nada disso...”, protesta o amigo leitor, “todo dia acontecem coisas, ‘cachoeiras’ de assuntos!” Claro que há uma pletora de notícias que eu chamaria de “faits divers” da política (noticiazinhas sem importância que cobriam os jornais antigos... fatos sem historicidade jornalística).
Eu, por cacoete de geração, vivo atrás de caminhos, de futuro, clareza para onde vamos. Mas a quantidade de fatos diversos que abundam (ohh,verbo propício...) nos jornais é tanta, que não dá para descobrir algum mapa debaixo desse confuso palheiro de vergonhas imundas, burrices transcendentais, desperdício de possibilidades.
Está difícil entender os recentes acontecimentos à luz de um apelo à “Razão”. Somos uns impotentes, analisando o mundo à luz de uma esperança lógica. Antigamente tínhamos um norte, ilusório ou não. Hoje, vivemos numa permanente incerteza que tentamos deslindar com mecanismos antigos. O colunista ou comentarista se empoleira num pódio de opiniões e fica deitando regras. Como eu, hoje em crise.
E aí? Qual é essa de um sujeito ficar dizendo o que acha certo ou errado na paisagem? Fico falando na TV, escrevendo nos jornais, tentando ser relevante, tentando salvar alguma coisa que nem sei o que é? Salvar o quê?
Antigamente, era mole. O mal era o capitalismo e o bem era o socialismo. Agora, os intelectuais, caridosos de carteirinha, cafetões da miséria, santos oportunistas estão em pânico, pois não conseguem pensar sem almejar alguma forma de “totalidade”.
Mas isso acabou. As coisas estão controlando os homens. As coisas tomaram o poder e nós, seus escravos, criamos nomes: “neoliberalismo, esquerdismo, nacionalismo”, um reducionismo apressado para nos dar a ilusão de controle. Mas, hoje, a marcha das coisas-zumbi já começou.
Diante dessa invasão dos vampiros de mercado e da tecnociência incontrolável, o pensamento “progressista” ficou lamentoso, tristinho de tanto absurdo, tanto na guerra internacional como no caos brasileiro. De que adiantam os queixumes? Como falar em democracia com muçulmanos analfabetos que desde o século 8º batem a cabeça nas pedras para exorcizar qualquer “perigo” de liberdade, repetindo mantras do Corão, enquanto, do outro lado, os caretas republicanos competem para ver quem é mais reacionário e escolhem esse Romney a repetir mantras da Bíblia fundamentalista? É terrível ver a vitória das religiões sobre a razão, é feio ver o século 21 começando na Idade Média, com bilhões de seres dominados por Alá, combatidos pelo Deus da indústria de armas. O homem-bomba matou o Eu.
Surge no horizonte da crise uma nova “razão irracional” (se é que o oxímoro é possível), pois vemos a direita crescer no mundo, junto a uma esquerda cada vez mais neostalinista, uma razão burra e organizada, fascistoide, principalmente na America Latina.
O problema é que não conseguimos abrir mão do “eu”, do desejo de ser um profeta ou professor ou comandante, tanto no pensamento, na política e nas artes. E, no entanto, vemos que o mundo se move com uma máquina própria. Os indivíduos viraram apenas uma peça ínfima que às vezes dispara novas rotas para a catástrofes. O “eu” virou um privilégio para poucos. Hitler foi um “eu” que encarnou o rancor nacional da Alemanha. Décadas depois, Osama foi um novo “eu” para atacar a modernização do Ocidente, supremo pavor (e desejo) do Islã. Do outro lado, Bush arrasou a América e o mundo. Dois psicopatas mudaram o tempo. Achávamos que tudo se moveria pelas grandes forças socioeconômicas e acabamos mudados por um maluco religioso e um imbecil alcoólatra. O mal difuso elege apenas seus operadores.
E no meio, entre o individuo e a massa, respira a liberdade como um bicho sem dono, a “liberdade” – essa coisa que nos provoca tanta angústia. Que liberdade? Contra um mal teórico ou a favor de um bem inapreensível? A único consolo que resta ao “eu” é o narcisismo como moda social, a acumulação de riquezas, charmes e ilusões. É o nascimento do eu-boçal. Seria o eu-burguês, ou eu-Miami. Ou então, o “eu” como uma espécie de prêmio para quem furar o muro do anonimato, para quem conseguir criar um eu fantasioso, um eu excêntrico, um eu que mostra a bunda, um eu de silicone ou um eu-big brother. O indivíduo está cada vez mais ridículo. Quem fala debaixo dessas duas letrinhas: o “Eu”?
Quem foi que inventou essa voz, esse brado que soa de dentro de um organismo, a partir do qual o mundo é contemplado, o que é essa voz cheia de certezas, quem são esses corpos opinativos que se pensam diferentes, mas são produzidos em série? Eles pensam: “Eu quero ser inconformista como todo mundo...”
O eu dos intelectuais está humilhado... Há um grande desânimo de pensar, de escrever, de análises sobre algo morto e inevitável e que já foi decidido. Refletir, fazer obras de arte, pra quê? Sem alguma esperança não há filosofia. O eu está sem orgulho, inútil.
E, aí, volta minha crise do início deste artigo deprimido (quem aguentou ler até agora?): como analisar racionalmente um país num tempo que ninguém comanda? Não dá. Tenho de utilizar novos conceitos para isso. Tenho de me conformar que não há mais solução para muitos problemas. Nem para o terrorismo, nem para a miséria e seus crimes. Nem na guerra, nem no tráfico de S. Paulo, por exemplo. Está tudo incorporado ao arquivo morto da História. Acabou o sonho de um futuro harmônico. O século 21 vai ser uma bosta mesmo.

Nenhum comentário: