Como analisar um mundo de incertezas?
Revejo meus artigos desde 1991, quando comecei a escrever em jornais e,
logo depois, a fazer comentários na TV e radio. Quase 20 anos de
falação e escritura. Mais de 2 mil crônicas em jornal e (contei) cerca
de 2,8 mil comentários na TV, sem falar no radio. E dai? Será que
adiantou alguma coisa? Digo isso porque, na época, jurei que, por falta
de assunto, jamais começaria um artigo com a frase: “Estou diante da
página branca em busca de um tema.” Jurei e cumpro o juramento, porque
hoje quem está diante da página branca é o País.
“Nada disso...”, protesta o amigo leitor, “todo dia acontecem coisas,
‘cachoeiras’ de assuntos!” Claro que há uma pletora de notícias que eu
chamaria de “faits divers” da política (noticiazinhas sem importância
que cobriam os jornais antigos... fatos sem historicidade jornalística).
Eu, por cacoete de geração, vivo atrás de caminhos, de futuro, clareza
para onde vamos. Mas a quantidade de fatos diversos que abundam
(ohh,verbo propício...) nos jornais é tanta, que não dá para descobrir
algum mapa debaixo desse confuso palheiro de vergonhas imundas, burrices
transcendentais, desperdício de possibilidades.
Está difícil entender os recentes acontecimentos à luz de um apelo à
“Razão”. Somos uns impotentes, analisando o mundo à luz de uma esperança
lógica. Antigamente tínhamos um norte, ilusório ou não. Hoje, vivemos
numa permanente incerteza que tentamos deslindar com mecanismos antigos.
O colunista ou comentarista se empoleira num pódio de opiniões e fica
deitando regras. Como eu, hoje em crise.
E aí? Qual é essa de um sujeito ficar dizendo o que acha certo ou
errado na paisagem? Fico falando na TV, escrevendo nos jornais, tentando
ser relevante, tentando salvar alguma coisa que nem sei o que é? Salvar
o quê?
Antigamente, era mole. O mal era o capitalismo e o bem era o
socialismo. Agora, os intelectuais, caridosos de carteirinha, cafetões
da miséria, santos oportunistas estão em pânico, pois não conseguem
pensar sem almejar alguma forma de “totalidade”.
Mas isso acabou. As coisas estão controlando os homens. As coisas
tomaram o poder e nós, seus escravos, criamos nomes: “neoliberalismo,
esquerdismo, nacionalismo”, um reducionismo apressado para nos dar a
ilusão de controle. Mas, hoje, a marcha das coisas-zumbi já começou.
Diante dessa invasão dos vampiros de mercado e da tecnociência
incontrolável, o pensamento “progressista” ficou lamentoso, tristinho de
tanto absurdo, tanto na guerra internacional como no caos brasileiro.
De que adiantam os queixumes? Como falar em democracia com muçulmanos
analfabetos que desde o século 8º batem a cabeça nas pedras para
exorcizar qualquer “perigo” de liberdade, repetindo mantras do Corão,
enquanto, do outro lado, os caretas republicanos competem para ver quem é
mais reacionário e escolhem esse Romney a repetir mantras da Bíblia
fundamentalista? É terrível ver a vitória das religiões sobre a razão, é
feio ver o século 21 começando na Idade Média, com bilhões de seres
dominados por Alá, combatidos pelo Deus da indústria de armas. O
homem-bomba matou o Eu.
Surge no horizonte da crise uma nova “razão irracional” (se é que o
oxímoro é possível), pois vemos a direita crescer no mundo, junto a uma
esquerda cada vez mais neostalinista, uma razão burra e organizada,
fascistoide, principalmente na America Latina.
O problema é que não conseguimos abrir mão do “eu”, do desejo de ser um
profeta ou professor ou comandante, tanto no pensamento, na política e
nas artes. E, no entanto, vemos que o mundo se move com uma máquina
própria. Os indivíduos viraram apenas uma peça ínfima que às vezes
dispara novas rotas para a catástrofes. O “eu” virou um privilégio para
poucos. Hitler foi um “eu” que encarnou o rancor nacional da Alemanha.
Décadas depois, Osama foi um novo “eu” para atacar a modernização do
Ocidente, supremo pavor (e desejo) do Islã. Do outro lado, Bush arrasou a
América e o mundo. Dois psicopatas mudaram o tempo. Achávamos que tudo
se moveria pelas grandes forças socioeconômicas e acabamos mudados por
um maluco religioso e um imbecil alcoólatra. O mal difuso elege apenas
seus operadores.
E no meio, entre o individuo e a massa, respira a liberdade como um
bicho sem dono, a “liberdade” – essa coisa que nos provoca tanta
angústia. Que liberdade? Contra um mal teórico ou a favor de um bem
inapreensível? A único consolo que resta ao “eu” é o narcisismo como
moda social, a acumulação de riquezas, charmes e ilusões. É o nascimento
do eu-boçal. Seria o eu-burguês, ou eu-Miami. Ou então, o “eu” como uma
espécie de prêmio para quem furar o muro do anonimato, para quem
conseguir criar um eu fantasioso, um eu excêntrico, um eu que mostra a
bunda, um eu de silicone ou um eu-big brother. O indivíduo está cada vez
mais ridículo. Quem fala debaixo dessas duas letrinhas: o “Eu”?
Quem foi que inventou essa voz, esse brado que soa de dentro de um
organismo, a partir do qual o mundo é contemplado, o que é essa voz
cheia de certezas, quem são esses corpos opinativos que se pensam
diferentes, mas são produzidos em série? Eles pensam: “Eu quero ser
inconformista como todo mundo...”
O eu dos intelectuais está humilhado... Há um grande desânimo de
pensar, de escrever, de análises sobre algo morto e inevitável e que já
foi decidido. Refletir, fazer obras de arte, pra quê? Sem alguma
esperança não há filosofia. O eu está sem orgulho, inútil.
E, aí, volta minha crise do início deste artigo deprimido (quem
aguentou ler até agora?): como analisar racionalmente um país num tempo
que ninguém comanda? Não dá. Tenho de utilizar novos conceitos para
isso. Tenho de me conformar que não há mais solução para muitos
problemas. Nem para o terrorismo, nem para a miséria e seus crimes. Nem
na guerra, nem no tráfico de S. Paulo, por exemplo. Está tudo
incorporado ao arquivo morto da História. Acabou o sonho de um futuro
harmônico. O século 21 vai ser uma bosta mesmo.